1ᵃˢ HISTÓRIAS CONTADAS PELA SÃOROSAS
Devoções de família
Santa Isabel de Portugal é celebrada no dia 4 de Julho, dia da sua morte e ressurreição. A minha devoção à pequena Isabel, princesa de Aragão feita fainha de Portugal com apenas 12 anos, por casamento com o Rei D. Dinis, em 1282, hoje venerada nos altares da Igreja Católica, tem origens familiares inatas e um motivo que se foi agudizando ao longo da vida – uma veneração especial por todos os que se santificam em família.
Para além de uma bondade imensa e de uma educação invulgar, Isabel era uma miúda que se distinguia por ser inteligente e com grande domínio de si mesma. Desde sempre praticava o jejum, distribuía esmolas aos necessitados, visitava os doentes sem «ter nojo», protegia os frágeis que erravam, era discreta e governava responsavelmente a casa – é este o seu retrato moral, traçado em documentos da época. Teve o primeiro filho, D. Afonso IV – o Bravo –, aos 20 anos de idade, com quem tinha uma ligação muito profunda. D. Afonso IV tem um grande conflito com o pai, o Rei D. Dinis, por receio de favorecimento a um filho bastardo do rei, que levou a uma guerra de 5 anos no reino. A Rainha Isabel de Portugal, para além de criar os filhos ilegítimos do seu marido, que foram vários, intervinha incansavelmente nas desavenças intermináveis entre D. Afonso IV e D. Dinis, fazendo de tudo para obrigar o filho a obedecer ao pai. Com o ímpeto de uma mulher corajosa que jogava tudo por tudo pelo bem, e de mãe decidida, punha-se a caminho de mula, dirigindo-se às frentes de batalha, chegando a interpor-se entre as hostes inimigas já com ordem de combate dada. Não conseguiu evitar algumas batalhas, mas seguramente evitou desfechos mais trágicos; e conseguiu a paz entre pai e filho em 1324.
Enquanto rainha foi também uma estadista competente e benfeitora social, conduzindo muitas obras de norte a sul de Portugal. Depois da morte do seu marido vestiu o hábito de Santa Clara mas não fez votos religiosos, conservando o que era seu para construir igrejas, mosteiros e hospitais, e assim dando largas ao seu sentido cristão da riqueza material.
Preparava-me para começar a contar estas histórias quando percebo que no dia 10 de Julho é celebrada Santa Felicidade e seus sete filhos, mártires do ano 162. Outra mulher notável que se santificou em família, neste caso sofrendo o martírio em Roma e exortando os seus sete filhos ao martírio! Pedro Crisólogo escreveu, a respeito desta heroica matrona: «No meio dos cadáveres mutilados e sangrentos daquelas ofertas queridas, passava mais alegre do que antigamente ao lado dos seus berços, porque via com os olhos da fé uma palma em cada ferida, em cada suplício uma recompensa e sobre cada vítima uma coroa». Ver a palma do martírio em cada ferida é uma imagem muito inspiradora.
Exortar os filhos ao martírio – ensiná-los a dar a vida pela verdade, sem condições. Ensinar que a vida não tem um valor absoluto, como um dia li. E que a honra, a dignidade e a fidelidade estão acima da vida e são valores pelos quais vale a pena morrer; se eu tivesse filhos era assim que gostava de ter conseguido desempenhar o desafiante papel de mãe, preparando-os para viver e morrer com dignidade.
No Evangelho desse mesmo dia 10 de Julho de 2020 (Mt 10, 16-23) antevê-se um pouco do que terá sido o testemunho de vida de Santa Isabel de Portugal: somos exortados a ser «prudentes como as serpentes e simples como as pombas» pois somos enviados «como ovelhas para o meio de lobos»; devemos ter «cuidado com os homens» pois seremos entregues aos tribunais e açoitados nas sinagogas; somos avisados que «o irmão entregará à morte o irmão e o pai entregará o filho», que «os filhos hão-de erguer-se contra os pais e causar-lhes a morte» e que seremos odiados por causa do nome de Jesus. Mas Jesus sossega-nos, mostrando o caminho: «aquele que perseverar até ao fim, esse será salvo». Foi com certeza esse caminho – o da perseverança dos santos – que Isabel percorreu ao longo dos seus 66 anos de vida terrena.
Perseverar não poderá ser teimar – será antes não desistir de percorrer o caminho da verdade, do bem, ainda que este passe por guinadas grandes e difíceis na vida. Isso exige treinar o dom do discernimento para não perseverarmos, afinal, a compactuar com violência implícita – por vezes tão subtil e cheia de sedução. Sermos reféns de relações humanas saudáveis só na aparência, subjugados tantas vezes a dependências de afectos, ou a idolatrias, e, ainda assim, julgarmos que estamos a perseverar no bem, pode ser um grande engano de heroísmo.
A origem familiar da minha devoção a Santa Isabel é inata – como uma herança que se transmite de forma surpreendente entre gerações. Descobri apenas recentemente que a minha tia trisavó, Maria Manuela, foi benfeitora da Confraria da Rainha Santa Isabel de Portugal e teria grande devoção a Santa Isabel. D. Maria Manuela de Brito e Castro de Figueiredo e Melo da Costa Lorena nasceu em Coimbra e foi baptizada na capela da sua quinta a 25 de Março de 1845. Sua mãe, D. Maria Inês da Luz de Carvalho Daun e Lorena, casou muito nova com António de Brito e Castro de Figueiredo e Melo da Costa, 46 anos mais velho. António de Brito e Castro era deão da Sé de Coimbra e viu-se na contingência de renunciar ao cargo que ocupava há décadas para casar, aos 64 anos, de forma a assegurar a descendência e a continuidade da casa. Tiveram quatro filhos e todos morreram em tenra idade, excepto a minha tia trisavó.
Os Marqueses de Pomares
Maria Manuela veio a casar em 1860, com apenas 14 anos de idade, com o seu tio, Luiz Maria, irmão mais novo de sua mãe, este já com 31 anos, numa união sem geração mas de uma fecundidade espantosa que foi bem para além da biológica – uma verdadeira união de Muito mais que dois, como sugere o título de um livro notável de Pablo Guerrero Rodríguez, SJ (Editorial A.O., 2018).
Para entender a fecundidade dos quase 35 anos de casamento de Maria Manuela e Luiz Maria temos primeiro que conhecer a sua matriz individual. D. Luiz Maria da Luz de Carvalho Daun e Lorena, 1º Marquês de Pomares, teve uma vida política muito activa – segundo escritos da época era «escravo do dever»: foi Vereador e, mais tarde, Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Deputado da Nação, Governador civil de Lisboa, Par do Reino nomeado por carta régia e Vogal Extraordinário do Supremo Tribunal Administrativo.
Sobre o seu carácter, transcreve-se um excerto elucidativo da Illustração Portugueza (10 de Janeiro de 1887) escrito ainda em sua vida: «D’uma familia illustre nas paginas da historia portugueza, descendente do marquez de Pombal, tendo, portanto, no passado um nome que só por si bastaria para nobilitar e engrandecer um brazão, D. Luiz de Carvalho pensou, e pensou bem, que as nobres tradições que se herdam são uma responsabilidade pesada, uma nobre obrigação que se impõe, uma condecoração sagrada que só pode usar-se quando cada dia que passe confirme o direito da sua invejada posse. Isto, que tão poucos compreendem, affirma-o a cada passo o sr. D. Luiz de Carvalho, pelo acrisolado fervor das suas idéas liberaes, pelo escrupulo da sua consciencia tão exigente e tão levantadamente esclarecida, pelo modo patriarcal, amplo, generoso e delicado, até aos limites do inverosimil, porque exerce a caridade. Não tendo filhos do seu casamento, elle e a companheira adoravelmente virtuosa e superiormente intelligente que lhe coube em sorte, amparam, acolhem, educam quantos desamparados imploram o abrigo da sua protecção, ou se revelam aos olhos da sua inexgotavel e incansavel piedade. (…) Na vida intima, é o sr. D. Luiz de Carvalho o mesmo que aparece na vida publica. Não é dos que imaginam possivel esta contradictoria e paradoxal dualidade, que torna em dois seres distinctos o homem publico e o homem particular. Entrar na casa em que este genuino e verdadeiro homem de bem, em que este fidalgo de raça e de costumes de caracter, de coração e de maneiras recebe os seus amigos ao lado d’uma das mais graciosamente delicadas, d’uma das mais talentosas e finas e distinctas senhoras da sociedade portugueza, é sentir o grande consolo intraduzivel que penetra as almas sonhadoras do que é bom, do que é bello, do que é raro, ao ver que os mais arrojados e radiantes sonhos de virtude, de caridade, de amor de familia, de hospitalidade antiga, de nobre e singela bondade podem ser ainda admiravelmente realisados no meio d’esse mundo cujo espectaculo nos entristece e magôa tantas vezes.».
D. Luiz vem a morrer no dia 2 de Dezembro de 1894, com 66 anos de idade, e o que se escreve publicamente por ocasião da sua morte não deixa também muitas dúvidas sobre a pessoa que foi. Na revista Occidente de 5 de Fevereiro de 1895, por exemplo, escreve-se, «Poucos homens públicos tem descido á campa levando, como o nobre marquez de Pomares, um nome tão immaculado e tão cheio de respeito pela sua honradez e pureza da sua consciência sempre propensa ao bom e ao útil. (…) O seu caracter de homem digno e bom transluziu nas mais santas manifestações da justiça e da caridade. (…) um verdadeiro homem de bem, pois que apesar de haver tido uma vida politica activissima d’ella saíu com o seu nome immaculado.».
A Marquesa de Pomares fica viúva aos 49 anos e morre em 1926, já com 80 anos de idade. Durante este último período da sua vida terrena desenvolveu uma actividade literária que espelha uma consciência social invulgar, e que será com certeza fruto dinâmico da comunhão conjugal santificadora que viveu. Num dos livros que escreveu, Os pobres e os ricos, pode ler-se uma dedicatória feita ao seu marido que é talvez das homenagens mais bonitas de que tenho conhecimento entre marido e mulher. Começa assim, «A meu marido, á sua veneranda memoria aureolada de justiça, de honra e de caridade» e logo se antevê uma revelação final, de saudade infinita: «Pobre como é, este preito significa apenas o testemunho da minha profunda veneração pela sua memória e da infinita saudade que elle me deixou» (dedicatória completa). Venerar a memória de um marido aureolada de justiça, honra e caridade testemunha uma entrega de vida radical e com certeza mútua, por isso cristã!
Foram também invulgares as homenagens feitas à Marquesa de Pomares por ocasião da sua morte, dia 15 de Janeiro de 1926 – aquela por quem «Dobram os sinos e a pobreza chora». Publicado no Correio de Coimbra (nº 192, de 23 de Janeiro de 1926) este poema, assinado apenas por C.L., foi descoberto por um grande amigo da nossa família – o Miguel Mora – e guardo-o em especial no meu coração. Começa assim,
Dobram os sinos e a pobreza chora,
Em torno do palácio hospitaleiro,
Parou o coração que sempre fora
Das graças do Senhor o dispenseiro
Gemem os sinos lugubre toada
Pesados crepes rojam pelo chão.
Morreu a Santa, diz a voz maguada,
Dos pobres servos, filhos d’adopção.
(…)
O Miguel é historiador e investigou a vida dos Marqueses de Pomares com grande dedicação, amizade e profundidade. Quando conversamos coloca repetidamente a mão no coração, como um reflexo incondicionado, a par das histórias que vai contando sobre a minha família. Perguntei-lhe se a minha tia trisavó teria outras devoções particulares para além da devoção a Santa Isabel, e se seria uma pessoa muito piedosa. Respondeu-me, «mais do que tudo ela praticou o Evangelho!». Pedi-lhe por isso para reunir num texto os factos de que tem conhecimento da vida deste casal, interpretados numa história contada por quem mais os estudou ao longo dos anos (2as Histórias contadas pela Sãorosas, em investigação histórica).
Os meus tios trisavós – os dois meus tios do mesmo sangue, já que eram tio e sobrinha –, como não tiveram descendência fizeram o seu sobrinho, António de Brito Peixoto de Carvalho e Bourbon – o meu bisavô António –, filho de D. Maria Vitória da Conceição do Carmo do Sacramento de Carvalho Daun e Lorena, sobrinha de D. Luiz e por isso prima direita de D. Maria Manuela, e de João Pedro Peixoto da Silva e Bourbon, herdeiro do seu património de Coimbra.
Por isso todos nós, descendentes, somos herdeiros espirituais do caminho conjugal percorrido por estes tios trisavós, a quem se referem publicamente como um verdadeiro homem de bem (D. Luiz) e como o coração despenseiro das graças do Senhor (D. Maria Manuela). Somos herdeiros de uma tradição de bem recebida de forma gratuita e assimétrica, mas sobretudo do espírito de exigência cristã que D. Luiz tinha em confirmar, em cada dia, o direito à posse das nobres tradições herdadas.
Os Marqueses de Pomares deixam também um legado de sabedoria na conversão de dificuldades em oportunidades, transformando em bem, em acolhimento aos outros, voltas da vida não desejadas. Não tiveram filhos, mas tinham a casa sempre aberta a todos os que viessem – praticaram a verdadeira hospitalidade! – e apoiaram materialmente e moralmente um sem número de famílias, em vida e post mortem, já que o seu testamento foi «um belo testemunho da nobreza do seu coração». O Miguel contou-me que o enterro da Marquesa foi uma das mais impressionantes manifestações de pesar a que Coimbra alguma vez assistiu, o que fica também claro neste texto publicado nos dias seguintes à sua morte, «O enorme cacho de homens e mulheres do povo, que acompanharam, entre lágrimas e soluções, durante todo o longuíssimo trajecto, o cadáver da ilustre extinta, é bem a prova de quão grandes foram os benefícios, que a todos sempre dispensou a saudosa fidalga (…)» (notícia completa).
Réplica da estátua de Santa Isabel de Portugal
Como acima escrito a minha tia trisavó foi benfeitora da Confraria da Rainha Santa Isabel. Por esse motivo um quadro seu está na sala dos benfeitores no Mosteiro Novo de Santa Clara, em Coimbra. Antes de ter conhecimento deste facto familiar, e como já tinha devoção a Santa Isabel, pedi para me ser atribuída em partilhas uma imagem de Santa Isabel que estava numa capela de família. É uma bonita réplica em tamanho pequeno da estátua original da Rainha Santa Isabel, feita pelo escultor português António Teixeira Lopes, que sai em procissão pela cidade de Coimbra de dois em dois anos.
Sou por isso herdeira da devoção da minha tia trisavó e da imagem de Santa Isabel que lhe pertenceu. Faço também parte da Confraria da Rainha Santa Isabel desde 11 de Abril de 2019, depois de aceitar o repto de uma amiga de infância, a Frederica Chichorro, historiadora, a quem pedi que contasse uma breve história da Rainha Santa Isabel de Portugal.
Uma família quase nómada e a criação da Sãorosas
A Sãorosas nasce no final de 2018 na sequência de uma situação inesperada de vida, de grande dificuldade, a que tive de fazer face. Sou professora de economia e tenho genuíno gosto pelo estudo da ciência económica, mas sempre fugi da vida empresarial e da prática dos princípios microeconómicos que lhe estão subjacentes – apenas os reconhecia enquanto hipóteses teóricas dos modelos económicos que estudava.
Não posso por isso dizer que tirei partido do que estudei para criar a Sãorosas; aproveitei, sim, a prática que ganhei com casas nas tantas mudanças que fiz com os meus pais! Lembrei-me da minha mãe – a Teca, a quem todos lembramos com saudade – em Bagdade, onde a certa altura vivemos, a distribuir caixas de papelão pelos quartos dos cinco filhos, obrigando-nos, ainda miúdos, a montar e desmontar casas com agilidade. Lembrei-me que a minha mãe nos ensinou a fazer "o morto" quando mudávamos de casa em Portugal: os cabides com roupa eram colocados num lençol, fechado com alfinetes, e este autêntico peso morto era então transportado às nossas costas até ao carro, já que não havia malas suficientes para uma grande família, quase nómada. Aproveitei também a lembrança da primeira casa que tive – um apartamento em Lisboa, no bairro de Santa Catarina – à qual uma revista de decoração tirou fotografias pois ficou engraçada nos aproveitamentos que fiz de velharias de família, já que ainda não tinha móveis meus.
Apesar de ter sempre fugido da prática dos princípios microeconómicos na minha vida profissional, ensino-os aos meus alunos com convicção teórica pois são resultados provados da ciência económica. Dos principais resultados da Teoria do Bem-estar parte do objectivo de maximização de lucros por parte das empresas, por ser o incentivo necessário à produção ótima numa economia, e chega ao bem-estar social máximo. O Primeiro Teorema do Bem-estar prova que um equilíbrio competitivo – preços e quantidades transacionadas que maximizam lucros e a utilidade dos consumidores, e igualam procura e oferta – é um óptimo de Pareto, o que quer dizer que a economia está organizada eficientemente e que não é possível melhorar um consumidor sem piorar outro. Dito de outra forma, o equilíbrio da economia gerado apenas pelas forças de mercado maximiza o bem-estar social (de consumidores e produtores), ou seja, leva ao óptimo social e por isso dispensa qualquer intervenção estatal. Parte-se então de incentivos individuais, e individualistas, de busca de lucros e de utilidade máxima, e chega-se ao bem-estar social máximo. Este é um resultado muito importante e clarificador da economia – é como um magis da economia liberal.
Quando o mercado é competitivo as empresas não conseguem ter lucros elevados – a concorrência faz que o lucro seja baixo e compatível com o máximo de bem-estar social. Consoante a concorrência diminui, o aumento do lucro faz-se possivelmente para níveis demasiados elevados do ponto de vista social. Mas se é verdade que o Primeiro Teorema do Bem-estar se aplica apenas quando o mercado é competitivo, não podendo por isso existir qualquer falha de mercado, também é verdade que todas as outras formas de organização de mercados, em que existe algum poder de mercado, partem igualmente do objetivo de maximização de lucros por parte do produtor. É uma questão de incentivos.
Há um argumento teórico adicional, relembrado pelo meu coautor, David Henriques, que pode ser aplicado a mercados em que os produtores têm algum poder sobre o preço, e que torna clara a relação entre lucros e bem-estar social máximo – o argumento da eficiência alocativa: para garantir que a transacção é eficiente (maximiza o bem-estar social) o bem tem que ser vendido ao consumidor que tem a valorização mais alta, e para isso o produtor tem que ter lucro pois o preço tem que ser pelo menos igual ao custo de oportunidade. Mais especificamente, o preço eficiente tem que ser pelo menos o custo de oportunidade (i.e. pelo menos a segunda valorização mais alta e no máximo a valorização mais alta).
De facto o Primeiro Teorema do Bem-estar prova que o equilíbrio competitivo é eficiente, mas nada diz sobre justiça pois não se refere à distribuição dos benefícios económicos. Havia por isso claramente um sentido em falta na minha nova actividade lucrativa na Sãorosas, e teria que representar uma vocação cristã ajustada às empresas que respeitasse os princípios provados pela ciência económica e os incentivos certos à produção. Usando forçosamente as minhas habituais lentes económicas para discernir, não fiz no entanto uso directo do que estudei, mais uma vez, mas foi fácil concluir que o sentido em falta teria de surgir algures a jusante de lucros gerados: determinei então que a Sãorosas tem o compromisso de doar um mínimo de 10% dos seus lucros anuais a instituições ligadas à Igreja Católica portuguesa.
Foi também simples o exercício interior a fazer, evitando (tentadores) desvios de vontade depois da decisão tomada: bastou ponderar que uma parte dos lucros é um excedente gerado pela Sãorosas, mas que não lhe pertence – pois resulta da incapacidade do mercado ser perfeito na sua concorrência –, tornando-se assim uma obrigação dar essa parte, ficando agradecida por haver quem humildemente aceite e sobretudo agradecida por haver instituições com obras notáveis que só existem se forem apoiadas financeiramente pelo sector privado (empresas e particulares); de outra forma acabam.
Para além da racionalidade económica, é uma questão de simples justiça dar de graça uma parte da riqueza gerada, já que a Sãorosas recebe de graça riqueza humana através das pessoas dignas que lhe prestam serviços – as Rosas da Sãorosas. E tal como o Papa afirma desassombradamente, numa homilia de 19 de Abril de 2020, «não é ideologia; é cristianismo» aprender com a comunidade cristã primitiva, onde se possuía tudo em comum: «Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um» (At 2, 45). A Sãorosas distribui uma décima parte; haverá por isso um longo caminho a percorrer.
Para além de tantos apoios a Sãorosas assenta em dois pilares fundamentais – o pilar do trabalho, ligado à vontade, e o pilar da espiritualidade, ligado à graça, ao discernimento, à confiança e à esperança.
A imagem da Sãorosas
Falta a história da imagem da Sãorosas, contada pela Sara Maia na magnífica obra de pintura que fez a homenagear Santa Isabel. O que lhe pedi inicialmente foi um desenho do Mosteiro Novo de Santa Clara, tremendamente bonito com as suas infinitas janelas a atravessar o comprido edifício e onde se encontra, no retábulo da capela-mor da Igreja, a urna de prata e cristal com o corpo incorrupto da Rainha Santa Isabel. A Sara, passados uns dias, confessou-me a sua inabilidade para desenhos de arquitectura e sugeriu «contar uma história», pois é o que faz habitualmente através do dom que tem para pintar.
Quando enviou a fotografia da obra concluída, explicou-a assim «Pensei na Rainha Santa Isabel como ela própria um jardim de bondade que floresce».
Histórias futuras por contar
Um próximo passo que a Sãorosas gostaria de dar, se conseguir reunir parceiros e condições financeiras, seria a criação da Cantina Pão da Sãorosas – um take-away social aberto ao público com refeições prontas a ser consumidas em casa, e onde o lucro gerado permita fornecer as mesmas refeições a famílias e ordens religiosas em dificuldades temporárias.
Uma negociante no manejo de duas coroas
Voltando a Santa Isabel, que é o primeiro propósito destas histórias, fiquei mais descansada quando soube que foi uma negociante... «do Céu»! O Padre António Vieira, no Sermão da Rainha Santa, pregado em Roma em 1674, refere-se-lhe como uma «industriosa negociante no manejo destas duas coroas» – a de Santa e a de Rainha.
E acrescenta algo de muito bonito, sobre dobrar virtudes: «A humildade, o desprezo do mundo, a moderação, a abstinência, a pobreza voluntária, na outra gente, são simples virtudes; mas estas mesmas, com uma coroa na cabeça, com um ceptro na mão, debaixo de um dossel e assentadas em um trono, são dobradas virtudes, porque são virtudes juntas com os seus contrários. A humildade junta com a majestade é dobrada humildade; a moderação junta com o supremo poder é dobrada moderação; o desprezo do mundo junto com o mesmo mundo aos pés é dobrado desprezo do mundo; a pobreza com a riqueza, a abstinência com a abundância, a mortificação com o regalo, a modéstia com a lisonja, é dobrada pobreza, é dobrada abstinência, é dobrada mortificação, é dobrada modéstia, porque é cada uma delas não uma rosa entre os espinhos, mas uma sarça verde entre as chamas. E porque a nossa negociante do Céu sabia que debaixo do risco está a ganância, por isso teve por maior conveniência não deixar senão ajuntar a coroa com a virtude, não deixar senão ajuntar a majestade com a santidade, para que, sendo rainha, e juntamente santa, fosse também maior santa, porque rainha».
Quando se olha para trás para contar uma história há sempre um emaranhado de emoções, ideais, idolatrias e esperanças! Aproveitei a obrigação de contar a história da criação da Sãorosas para fazer algumas homenagens – bem devidas – e acabei por referir várias pessoas que já não estão entre nós, entre as quais alguns santos.
Mas luz central do caminho é Santo Inácio de Loiola, com o testemunho que deixou sobre transformar em bem uma volta de vida não desejada, depois de um ferimento grave num combate que travou em Pamplona em pleno século XVI. Um «bom combate», afinal, pois, percorrido mais um sem número de provações ao longo da sua vida, ele então recomenda «(…) pedir conhecimento interno de tanto bem recebido, para que eu inteiramente reconhecendo, possa em tudo amar e servir (…)» (Exercícios Espirituais, 233).
Teresa Eugénia, 11 de Agosto de 2020